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sábado, 29 de novembro de 2008

O erro teórico (o edifício doutrinal, ou estratégia política) de Marx?

“Marx nunca teve tanta razão como hoje!”. A frase é de Saramago e permitam-me que me associe ao seu teor. Na verdade, quase dois séculos passados e o fulgor das teorias marxistas permanece intacto social, política e cientificamente, não obstante as confusões doutrinárias (quantas vezes elevadas a científicas), as peripécias políticas (com gravíssimas consequências humanitárias), verificadas, essencialmente, durante o século XX e com resquícios no início de século XXI. O presente trabalho terá por objecto a reorganização dos princípios enunciados por Marx durante o século XIX, acerca da ciclicidade de sistemas económicos – e por consequência dos modos de produção - em três categorias distintas: Teoria; Doutrina; Política; As fontes deste trabalho são, quiçá, os dois principais instrumentos de meditação ideológica dos marxistas: O Capital e o Manifesto Comunista. Concluo apenas com uma última nota introdutória, mas de certo importante, acerca do meu posicionamento ideológico, para que não existam presunções, tão em voga hodiernamente, de cariz científico e por isso pretensamente de maior imparcialidade. Sou marxista de formação e de inspiração ideológica. Jamais tentarei elevar os pressupostos em que assentam as minhas ideias, à universalidade e imutabilidade próprias das ciências analíticas, mas já não das ciências sociais.

A- Enquadrando o que em cima se expôs, dir-se-á que destrinça entre Teoria, Doutrina e Política nos remete para meados do século XIX quando um alemão Rau em 1826 se debruçou pela primeira vez sobre o tema. Seguiram-se outros autores como Max Weber que sustentou a necessidade de manter distintos em sociologia e economia política os conceitos de doutrina e teoria. Em Portugal foi François Perroux, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que em meados da década de 30, procedeu a uma clara e sintética distinção epistemológica entre as três categorias. Resumindo e simplificando os ensinamentos de Perroux temos que: a Teoria se reporta a “juízos de existência” que os indivíduos esboçam sobre a realidade, isto é, à avaliação que fazem sobre os a “verdade da realidade”(dos factos); a Doutrina refere-se, ao invés, a “juízos de valor” sobre a apreensão ou representação teórica da realidade, ou seja, premissas declaradas especificamente condicionadas pela concreta e pessoal concepção do Mundo; a Política incide, por sua vez, sobre “ juízos de adequação” teleológico-funcionais de meios ,concedidos pela teoria e determinados pela doutrina, quer dizer, aquelas declarações que embora teoricamente dependentes e doutrinalmente especificadas, se ligam à estratégia inerente à manutenção ou alcance do poder que a política sempre visa.
Em linhas gerais, constatamos que os três campos, embora diferentes, contêm traços que poderão, se o rigor faltar, confundir-se. Seguir-se-á o necessário enquadramento das ideias de Marx nestas três categorias.


B-
“ Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção, constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual assenta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. (...) Não é a consciência dos homens que determina o seu ser social; é, ao invés, o seu ser social que determina a sua consciência. Em certo estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações transformam-se em entraves desse desenvolvimento. Abre-se então uma época de revolução social. A mudança na base económica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura. (...)”
Pode dizer-se hoje, com toda a propriedade, ter este excerto revolucionado por completo a forma de abordar as relações de produção, a economia política, em suma, a vida em sociedade. Preceito este, que conjugado com aquele que se refere no início do Manifesto Comunista “ A História de todas as sociedades até aos nossos dias é a história da luta de classes”, edificam a teoria económica do marxismo, até hoje expectante por uma superação real e efectiva.
Neste sentido temos: a) leis gerais válidas para todos os modos de produção; b) leis próprias de cada um dos modos de produção.

a)Nesta categoria encontramos a teoria segundo a qual se deverá verificar a correspondência necessária entre a natureza das relações de produção e o carácter das forças produtivas. Simplificando, se se verificar um desenvolvimento não uniforme ou desproporcionado entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção (se este for superior àquele), tal constituirá um entrave ao progresso do modo de produção. Se este problema se mantiver (como em geral se mantém) tal determinará a substituição do modo de produção, e consequentemente, do sistema económico vigente.

b) No modo de produção capitalista, a contradição reside sobretudo no carácter social das relações produção e na, paradoxal, propriedade privada dos meios de produção. A teoria de Marx vai no sentido de dirimir tal incongruência, aliando ao carácter social das relações de produção, a propriedade social dos meios de produção.(Socialismo)

É, com efeito, esta uma das principais teorias legadas pelo marxismo (para além da teoria do valor, da mais valia, da exploração do trabalho, da concentração capitalista, etc).
Releve-se o termo atrás referido “teoria”. Como no ponto anterior se concluiu, a teoria reporta-se a “juízos de existência” que os indivíduos esboçam sobre a realidade. É isso mesmo que se verifica na teoria mencionada. A realidade mostra que a opção por um determinado modo de produção, determina o regime político vigente e toda a produção legislativa subsequente (produção legislativa- por isso emissão de leis e não existência de uma autêntica Ordem de Direito que como se sabe se diferencia, nos limites, fundamentos e actuação das Ordem Jurídicas stricto senso) – Sistema Económico. De tal superestrutura, surgirá então um “padrão uniformizado de cidadãos” doutrinalmente apostados em defender o seu modelo teórico de sociedade e politicamente preparados (meios) de o fazer vigorar. “ A única via real pela qual o modo de produção e organização social que lhe corresponde caminham para a sua dissolução e a sua metamorfose é o desenvolvimento histórico dos seus antagonismos permanentes.”


C- As minhas dúvidas acentuam-se, multiplicam-se mesmo, quanto ao modo de combate ao capitalismo proposto por Marx. Este sugere a revolução social. Para tanto, sustenta que “ se atingiu actualmente o momento em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode libertar-se do jugo da classe exploradora e dominante (a burguesia) sem se libertar ao mesmo tempo e definitivamente toda a sociedade de toda a exploração, de toda a opressão, de todas as diferenças de classes e de todas as lutas de classes”. Neste sentido, prossegue o autor, “ o proletariado servir-se-á da supremacia política para arrancar pouco a pouco o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção entre as mãos do estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante (...). Naturalmente, isso só poderá efectuar-se, no início, por uma violação despótica do direito de propriedade (...), isto é, pela adopção de medidas que, economicamente, pareçam insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso do movimento, se ultrapassam elas próprias e são indispensáveis como meio de subverter completamente todo o modo de produção”.
Como se perceberá pelas considerações feitas no ponto anterior, os últimos dois excertos não se inserem no âmbito das teorias marxistas. Tentar fazê-lo constituiria um erro teórico irremediável, porquanto se afectaria o princípio metodológico que presidiu o trabalho de Marx e a “coerência histórica” que as sustem. Tratam-se, pelo contrário, de considerações doutrinais (“ atingiu-se actualmente o momento em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode libertar-se do jugo da classe exploradora e dominante (a burguesia) sem se libertar ao mesmo tempo e definitivamente toda a sociedade de toda a exploração, de toda a opressão, de todas as diferenças de classes e de todas as lutas de classes.”) e de estratégia política (“ o proletariado servir-se-á da supremacia política para arrancar pouco a pouco o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção entre as mãos do estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante (...). Naturalmente, isso só poderá efectuar-se, no início, por uma violação despótica do direito de propriedade (...), isto é, pela adopção de medidas que, economicamente, pareçam insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso do movimento, se ultrapassam elas próprias e são indispensáveis como meio de subverter completamente todo o modo de produção.”). Ainda que se possa concordar em geral com o juízo de valor (doutrina) emitido na primeira citação, já a segunda é alvo de inúmeras críticas. Em primeiro lugar, acelerar o processo de desmoronamento do capitalismo como princípio teórico constitui um tremendo erro, pois se se parte do princípio de que “ a única via real pela qual o modo de produção e organização social que lhe corresponde caminham para a sua dissolução e a sua metamorfose é o desenvolvimento histórico dos seus antagonismos permanentes”, se, portanto, esta teoria se verificou nos outros sistemas económicos que precederam o capitalismo (Comunismo Primitivo; Esclavagismo; Feudalismo;), não se perceberá qual o motivo para alterar neste sistema concreto, a ideia da “correspondência necessária entre a natureza das relações de produção e o carácter das forças produtivas”. Aceitar-se-á, indubitavelmente, como política estratégica, nunca como teoria (económica). Em segundo lugar, do ponto de vista político e estratégico, e sobretudo democrático dos nossos dias, é questionável a tese segundo a qual os oprimidos se deveriam tornar opressores e os opressores oprimidos. Ainda que se sustente e, por isso, se legitime, que os oprimidos são em muito maior número (maioria) e os opressores em menor número (minoria), nenhuma sociedade moderna se considerará democrática se se impuser a ditadura da maioria. A democracia tem, igualmente, o dever de salvaguardar as minorias, sejam elas políticas, religiosas, culturais ou étnicas e os seus interesses e aspirações. Em terceiro lugar, uma ideia conexionada com as duas primeiras. Os processos políticos de revoluções sociais com vista à antecipação da queda do capitalismo, constituíram eles próprios, entraves e retardaram, quer se queira quer não, o surgimento do Socialismo, enquanto sistema económico libertador. Tais processos, para além da imposição pelas armas, tiveram o defeito de revelar à sociedade uma imagem deturpada do Socialismo. Imagem que se justifica e compreende, uma vez que se não tinham verificado os requisitos necessários (“...o desenvolvimento histórico dos seus antagonismos permanentes.”) para a queda do capitalismo e o surgimento do Socialismo. Os movimentos pré-socialistas do século XX revelaram um modo de produção assente na redistribuição de miséria e não de riqueza como se espera, legitimamente do Socialismo. Numa palavra: gestão equitativa de pobreza.


A grande conclusão a tirar deste trabalho é, no fundo, aquela que vem distinguido os marxistas desde o século XIX, particularmente as diferentes organizações partidárias. Embora coexistam os princípios teóricos, a base ideológica, a divergência, residiu e continua a residir, na doutrina prevalecente e na estratégia política a adoptar para fazer face aos problemas que o capitalismo sempre, pela sua natureza, causa. Esta é, pois, a melhor resposta a uma crítica actual, segundo a qual determinadas forças políticas de esquerda não têm uma ideologia fortemente vincada. A ideia é esta: nesses partidos, não obstante a vinculatividade das teorias marxistas, diverge-se quanto à doutrina a adoptar (leninista, estalinista, trotskista, maoísta, etc), sendo certo que o edifício teórico de Marx prevalece. Outra divergência prende-se com a estratégia política a seguir. Se é verdade que uns tentam, no século XXI, sanar os problemas, com estratégia do século XIX, esboçada por Marx (Ditadura do Proletariado), outros têm vindo a desenvolver novas técnicas de combate político de cariz democrático. Uma coisa parece, no entanto, transversal: é necessário agir, reivindicar. E não há reivindicação credível que se não faça com alternativas, não meramente retóricas.
Tudo isto, partindo sempre do princípio que não existem estratégias políticas susceptíveis de conversão em teorias. E que não existem teorias científicas, no sentido de serem aproblemáticas, universais e imutáveis...

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