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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A Vergílio Ferreira

Como que um jovem que se constipa num mundo frio e obtuso, ideologicamente à margem das emoções, "Aparição" de Vergílio Ferreira, teve em mim o efeito revitalizador, direi mesmo regenerador, capaz de combater todos os vírus, aos quais um jovem de 17 anos se sujeita fazendo parte deste lugar. Ainda que a história não o reconheça, Vergílio Ferreira foi, em meu entender, o romancista português do século XX. Há, porém, algumas reflexões, efectivadas em notáveis expressões ( como era, aliás, de seu timbre), politicamente marcadas, as quais tentarei, honrando a minha posição política, rebater.

A - A certa altura diz Vergílio Ferreira, que os comunistas consideravam o comunismo o fim da história. Ora, não poderia haver maior discordância da minha parte, ainda que não seja, claramente, comunista. Com efeito, o marxismo é precisamente uma análise histórica da economia, sendo, concomitantemente, uma visão económica da história. Todos os sistemas económicos existentes ou a existir, segundo Marx, a saber, Comunismo Primitivo, Esclavagismo, Feudalismo, Capitalismo e Socialismo, resultam das movimentações históricas das forças produtivas da sociedade e das relações sociais de produção, ou melhor dizendo, das contradições que no seu seio promanam. Desta dialéctica, temos que a sucessão dos diversos sistemas económicos se deve a contradições internas que cada sistema manifesta. Cada sistema e por isso o seu modo de produção, é o corolário da superação das contradições dos modos de produção anteriores. Logo com novas características. Há, todavia, toda uma bagagem anterior, de outros modos de produção, que se mantém, conferindo, deste modo, uma coerência histórica à teoria dos modos de produção de Marx. O Socialismo, o último dos sistemas económicos analisados por Marx, mas nem por isso aspirante à eternidade, seria pois o resultado das contradições do modo de produção capitalista: o carácter social das relações de produção e propriedade privada dos meios de produção. Não se poderia exigir de Marx que advinha-se, literalmente, o que sucederia ao socialismo, uma vez que só a sua existência efectiva (não concretizada no seu tempo), permitiria uma análise rigorosa das suas contradições. Tal pretensão, corresponderia, assim, a uma violação grave daquela coerência histórica e do modelo metodológico que determinou todo o seu trabalho.

B - Outras das reflexões de Vergílio Ferreira que merece a minha discordância, refere-se à ideia, segundo a qual o marxismo exacerba-se em fanatismo religioso. Quanto a este ponto, o que se poderá dizer é que se trata da visão de um romancista e nessa medida, economicamente pouco relevante. Do que se trata é de contrapor a teoria (juízos de existência) marxista, com a doutrina (juízos de valor) criacionista. Não parece de todo sensato, comparar uma análise económica da história, convertida em teoria, com o dogmatismo próprio de uma religião: doutrina. Uma coisa parece, no entanto, clara. O fanatismo é maior da crítica do que propriamente dos marxistas. Por outro lado, é indubitável, que a evolução do socialismo (e não exactamente do socialismo-comunismo de Marx) representa a "autonomização interior" do Ser Humano face a deus ("socialismo interior"), metaforicamente ilustrada com a declaração unilateral de independência face ao Olimpo. O socialismo não se compadece, pois, com o "aprisionamento de alma" que a religião sempre preconiza.

C - "Pensar com Marx ou Freud que a pessoa que somos não é a pessoa que somos, mas a ideologia que impregnou ou que essa pessoa ignora em si, é o mesmo que dizer de um tecido que ele não é o que é, mas a ovelha de onde se tirou a lã ou a erva que a ovelha comeu ou mesmo a semente e o estrume de onde veio a erva a crescer. Mas quem é que pode vestir-se com erva?"
Esta expressão de Vergílio Ferreira evidencia, sem ironia, a mestria do autor no domínio da língua portuguesa, na edificação textual. O seu estilo, o seu modo de expor a “Ideia” é de tal forma sublime, que o leitor, ainda que ideologicamente baleado, se sente tentado, sem delongas, a concordar euforicamente. A concordância advém, com efeito, do ressurgimento da esperança, do suspiro de alívio que o leitor é majestosamente coagido a manifestar, tamanha a grandeza espiritual do pensamento do autor. Porém... O Homem nunca encontrará melhor aconchego para a sua consciência do que a crença indisputável na sua raiz social. Ninguém é o que é porque é. Todos somos o que somos porque fomos. Decerto, não se negará que aquilo que somos é determinado pelo que fomos… Mais uma vez Vergílio Ferreira olvida a natureza económica da teoria de Marx. Segundo ela e acompanhando Vergílio Ferreira, o valor do tecido, o seu custo social de produção, é resultado das despesas em semente e estrume de onde germinará a erva que a ovelha irá comer, que, por sua vez, conceder-lhe-á boa lã que uma vez feita a tosquia será trabalhada em fábricas, até surgir, enfim, o tecido, que o capitalista venderá. (O tecido não é o que é. Os tecidos são o que são porque foram.) Também o tecido é resultado de um processo social. O capitalista, após os vários pagamentos - aos proprietários do pasto, das sementes e do estrume que originará, as ervas, dos tosquiadores de ovelhas, e dos seus assalariados pelo preço da sua força de trabalho- receberá a margem de lucro que a sua posição garante, mas que o seu trabalho não justifica.